sábado, 30 de novembro de 2013

Criança


  


Como pássaro
saltitando de ramo em ramo
lanças ao tempo relapso
dóceis gorjeios
de amor e alegria
neste mundo de loucos
que não se revêem
no espelho das tuas pupilas
e o ameaçam de colapso




Do Livro "Memória Unconsumível" - Capítulo "Passarões e Passarinhos"
Foto - Yosef - www.olhares.sapo.pt 


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Rir






Rir de tudo,
rir às gargalhadas,
é o único remédio
ao alcance de todas as bolsas
contra a estupidez universal.

Pena é que eu já não seja capaz de rir.






Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Pessoal e Intransmissível"
Foto - Mafásiras - www.olhares.sapo.pt



quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Inocência





Vejo aquele rosto de anjo
Com insígnias de morte


Rosto de anjo
inocente
tranquilo


Rosto de anjo
sereno
tranquilo


Aquele rosto
pertence  a um corpo
ornamentado~com insígnias de morte
com insígnias de  "COMANDOS"
lá onde o coração bate
o sangue corre
a vida flui


Como isto dói!
Este culto do falso herói
Esta apologia da guerra imperialista


Talvez só porque é bonito
tem estética
"fica mesmo a matar"


E anda por aí
tanto anjo assim!





Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo  " Caminhos"



quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Caminhos





Por baixo começa tudo
neste polissémico entrudo
de veias abertas
para as grandes artérias
do comércio monopolista
onde o Homem
olhando demasiado longe
se perde a si próprio de vista






Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Caminhos"
Foto -  Wikipédia 



terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sombra





Um homem pode ser do tamanho que quiser
Porque pode ser do tamanho da sua sombra


Da sua sombra
ao nascer do Sol
recortando-se
por cima do solo fumegante


Da sua sombra
ao pôr do Sol
com os pés sobre um monte
a ver-se
... crescer
a ver-se diluir
... diluir
a ver-se desaparecer
... desaparecer


Da sua sombra
à luz das lâmpadas do caminho
dos faróis dos automóveis
do néon citadino
sombra que lentamente vai
lentamente vem
que rapidamente vai
e já não vem
sombra que apaga e acende
sombra intermitente


Da sua sombra
à luz do luar
os próprios passos
acordando silêncios
em ruas de aldeia velha


Da sua sombra
à luz duma vela
duma candeia de azeite
dum candeeiro a petróleo
do fogo duma lareira
sombra tremeluzente
sobre si própria dobrada
entre quatro paredes
o chão
e o telhado


Um homem pode ser do tamanho que quiser
Pode ver-se crescer
Pode ver-se diminuir
E ver-se desaparecer também
Para o longe a olhar
ou para os próprios pés






Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Caminhos"
Foto -  sabedoriauniversal  





segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Menino





Tlão ... tlão ... tlão ...


Dez horas da noite
Cacimbo no ar


Truca, truca, truca, 


Dez anos de vida
Livros na mão a esvoaçar


Tlão... tlão...
Truca, truca, truca,


Bater lento de sino
Passo rápido de menino


Sino lá no alto insensível
Menino cá em baixo incorruptível


Truca, truca, truca


Menino pobre descalço
bate com os pés no chão
ao sino indiferente
à ignorança dizendo não


Tlão ...


Sino que enferruja
Sino que morre



Menino que garatuja
Menino que corre


Truca, truca, truca...








Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Interlúdio"
Foto -  sentelhadalma 



domingo, 24 de novembro de 2013

Natureza Viva





No agreste
florir campestre
de ventos e balas
furando vertiginosos
silêncios antigos
brota a seiva do solo
por raízes meteorológicas
de sentinelas seculares
apontando ao eterno germinar








Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo " Interlúdio"
Foto -  fundospaisagens 



sábado, 23 de novembro de 2013

Estar





Comboio,  navio,  avião,
Há sempre um que nos deixa
quando devíamos partir
Há sempre um que nos leva
quando devíamos ficar


Comboio,  navio,  avião,  
Que podem
não ser comboio
não ser navio
não ser avião


Um gesto apenas
(terno ou brusco - adivinhar?)
Só uma palavra
Um olhar
(ou não olhar)


Comboio,  navio,  avião,  
Gesto,  palavra,  olhar,


É tudo o mesmo
Porque não há partir nem ficar
Há permanecer
Há estar


Estar distante,  ficando
Permanecer,  partindo







Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Memória Inconsumível"
Foto -  soboasnovas 




terça-feira, 19 de novembro de 2013

Mais-Valia





Tremem as florestas
feridas
por assanhados serrotes
cortando cerce
a sua clorofílica função


Treme o chao
pisado
por bípedes quizumbas
precocemente moribundas
afocinhando inebriadas
na carne das suas orgias


Tremem rios e oceanos
conspurcados
pelos detritos pesticidas
vomitados pelas cloacas
das fábricas e arsenais
da mais-desumana-valia


Tremem os ares
vermelhos
de sangue e de cólera
esparsos no horizonte infinito
de calamidades genocidas 
incendiadas em imaculados pentágonos


Sinais dum tempo
quimicamente contaminado
por cérebros prenhes
de vírus galácticos







Do livro "Memória Inconsumável" - Capítulo "Passarões e Passarinhos"
Foto -  Horizonte Geográfico 


domingo, 17 de novembro de 2013

Salvadores da Humanidade





Apóstolos da destruição e da matança
armados em salvadores da humanidade

Pedantes presunçosos
de sorriso engatilhado
disparam morte
por todo o lado

Lá vai míssil
Lá vai metralha
Apontados por computador
Guiados por laser

São outros os índios
São os mesmos os cow-boys
São outros os efeitos
São os mesmos os fins




Do Livro "Memória Inconsumável" - Capítulo " Passdarões e Passarinhos"

sábado, 16 de novembro de 2013

Fogachos




No engano de crer
que basta a vontade de ser
e já se é
cedo se lhes extinguiu o fogo
que alguma vez irradiaram


Arderam em chama lenta
ao som de clamores babados
saídos em uníssono
de bocas perjuras
ávidas de sinecuras


Ficaram cinza
que ventos brandos empurraram
para a vala comum
das inutilidades faustosas







Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo " Caminhos"
Foto -  Pedro Coelho 






sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Pecado






Eva sem Adão
não conheceria o Paraíso
e Adão sem Eva
também não

E só o puderam conhecer
depois dele comer a maçã
que ela lhe deu

Mas como qualquer oportunista
subverteu os factos
e chamou a isso pecado,
muita gente tem padecido
com o Paraíso ao lado




Do Livro "Memória Inconsumível" - Capítulo " Interlúdio"
Quadro a óleo de Tintoretto (Jacopo Comim)




quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Passos





Passos perdidos
no decorrer dos dias e das noites,
das semanas, dos meses e dos anos.


Passos inúteis
por caminhos macios,
direitos, longos e largos.


Passos hesitantes
de destino vago
amoldado à ineficácia
do acto de existir.


Passos trémulos
na cidade adocicada
de sugestões digestivas
em cadeiras almofadadas.


Passos mortos
de morto
fingindo vida.







Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Pessoal e Intransmissível"




domingo, 10 de novembro de 2013

Carestia





Domingo
Dez horas da manhã
Trinta e um de Julho
de mil novecentos e oitenta e três

Chega uma vizinha a chorar
com cinco folhinhas
de couve na mão

Lamuria-se
mansamente indignada
porque lhe pediram por aquilo
ali no bazar de Malhangalense
vinte e cinco meticais

E eu fico pasmado
ciente de que nem isso
nem a mansidão indignada
da minha vizinha
resolvem nada.



Do Livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Passarões e Passarinhos"
Foto - Google




sábado, 9 de novembro de 2013

Quase cadáveres





 Companheiros!

Há por aí quem diga
que nós não queremos trabalhar

São os que comem
o que nós produzimos
e se gozam da beleza e do conforto
do que sai das nossas mãos

"Não querem trabalhar"
"Não querem trabalhar"
"Não querem trabalhar"

Dizem-no e repetem-no
sem vergonha nenhuma
os que chamam um electricista
só para substituir uma lâmpada

Dizem-no e repetem-no
até à exaustão
os que não se comovem
com as viúvas e os órfãos
deixados por aqueles
que para apanharem o peixe
que eles comem
vão morrer no mar

Os que nunca plantaram uma couve
nem sabem os cuidados
que é preciso ter com ela

Os que nunca ordenharam
nem viram ordenhar
o leite que bebem
nem sabem como se faz
o queijo e a manteiga

São os que gostariam
que em toda a parte
fosse como no Chile de Pinochet
e na Argentina de Videla
no Marrocos de Hassan II
e no Egipto de Sadat
no Israel sionista
e na Indonésia de Suharto

São os saudosos
da Alemanha de Hitler
e da Itália de Mussolini
do Portugal de Salazar e Caetano
e da Espanha de Franco

São os que espumam de raiva
quando ouvem os nossos passos firmes
onde até há poucos anos
só ouviam o som dos bastões
a desbaratarem as nossas manifestações

São os que sentem a úlcera latejar
quando vêem os nossos desfiles
com máquinas e ferramentas
onde antes só viam passar
tropas fascistas
com tanques e baionetas

Passam os dias
a derramar veneno
a nadar na mentira
a mergulhar na calúnia
porque já não trabalhamos
para eles enriquecerem

Estão quase mortos
são quase cadáveres

O veneno que derramaram
a eles próprios mata
mas movem-se por aí
e incomodam

Cantemos
Cantemos companheiros
porque o presente somos nós

Marchemos
Marchemos companheiros
rumo ao futuro que nos pertence





Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Utopias"
Foto -  criticadodireito 



sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Tecnologia





Rodas quadruplicadas
fabricadas
pelo aço ginasticado
cavalgam
o asfalto duro
ignaras
do sangue
do suor
e do gesto
ontologicamente
ancorados
na descoberta o fogo








Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo "Interlúdio"
Foto -  webtractor  




quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Mutação





Inquebrantáveis desígnios
forjados no quotidiano
arrastar de sonhos indeléveis
traçam o rectílínio raio
apontado ao código genético
dum inconsciente colectivo
catastroficamente ultrapassado









Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo " Caminhos"
Ilustação -  infoabril 


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Desejo





Este desejo
de estar em todas as coisas,
de fazer parte de tudo!


É um êxtase,
uma nostalgia,
um mundo grande
numa palma de mão vazia.









Do livro "Memória Inconsumível" - Capítulo " Pessoal e Intransmissível"
Foto - Aníbal Seraphim



domingo, 3 de novembro de 2013

O Poeta




Fazer poesia
é jogar com as palavras
(cada vez mais)

Todos precisamos
de qualquer jogo

Jogo jogado para ganhar
ficar em cima
ou à frente

Jogo jogado consigo mesmo
falseando em geral o resultado

Nisso se joga o poeta
com as palavras por meio
com o projectar-se por meta

Meio/meta
Alvo/seta
A palavra
espeta
o poeta
perdido
no mar
revolto
do mundo
sem fundo
metralhado
por jogadores
jogando
bases
baías
batalhões
de olhos postos
em cifrões
grandes
como países
continentes
constelações


Pobre Poeta!




Do livro "Memória Inconsumivel" - Capítulo "Em jeito de posfácio"
Ilustração -  Literal